lembrança

Filipe Maia
6 min readJul 23, 2021

--

a cabeça tombada para fora do carro enquanto metade de mim saía pela boca, espalhando o vômito no asfalto em movimento e, em grande parte, na lataria da van que me levava pra casa, não me deixava esquecer que eu tinha que dar satisfação do porquê me permiti, inconscientemente, chegar naquele estado de um adolescente que mal terminara de explodir as primeiras espinhas da cara.

mais curioso que estar bêbado feito um gambá foi lembrar de uma música que tocava na época e cantá-la para quem quisesse ouvir e ver a minha cena autodepreciativa. foi a primeira vez que bebi e aprendi ali que não sabia meu limite e que talvez não fosse saber tão cedo.

essa cena é hoje engraçada, mas foi motivo de humilhação feita por aquelas patricinhas metidas da sala ao lado por um bom tempo. foi o motorista (sim, tinha disso) delas que me levou para casa e o amigão não fez questão de poupar detalhes. na segunda-feira lá estavam os dedos apontados e as risadinhas de canto de boca que eu custei a esquecer.

anos depois, sentado no estacionamento de um supermercado, bebendo com os melhores amigos que a vida podia me dar, tivemos a excelente ideia de ir dirigindo até a praia, distantes a pouco menos de 100km, dirigindo por curvas escorregadias de uma noite chuvosa rumo ao litoral. se eu estou aqui contando essa história é porque vivemos para contá-la, mas as luzes do giroflex policial nos parando 2 e 45 da manhã nos fez entender que a ideia estúpida poderia terminar de outra forma mais estúpida ainda.

sorte a nossa, ou mero descaso policial com três homens brancos com cara de criados pela vó, seguimos o caminho guiados pelo privilégio da cor e pela boa atuação do motorista que disse que eu estava dormindo enquanto na verdade eu fingia um repentino desmaio já que da minha boca só saía merda naquele momento.

ir até a praia não foi nada interessante, nada divertido e nada reconfortante, mas estar rodeado de quem se ama valeu cada susto às 5 e meia voltando com o sono de bêbados inconsequentes. se existe alguma fé divina, naquele dia ela foi posta à prova para que não fosse nosso momento de deixar três mães tristes.

teve também a vez que a visita ao estádio de futebol para ver meu time jogar mais uma partida inóspita do campeonato estadual, vez da qual me arrependi amargamente de gostar tanto de algo que não me traria benefício pessoal nenhum além de fazer parte de um “bando de loucos” que realmente deviam estar malucos por estarem naquela noite gelada e atípica de verão vendo aquele time horrendo formado por jogadores muito ruins que ganhavam salários muito bons, jogando sem vontade de estarem ali.

21 mil pessoas numa quinta feira a noite é muito para o que se vira em campo. para o que o time apresentou, 15 pessoas mais o pipoqueiro estavam de bom tamanho. o pipoqueiro pelo menos estaria trabalhando e encheria a pança dos 15 presentes. os demais seriam, no máximo, amigos dos jogadores.

O time empatara no forçado 1 a 1 contra qualquer time do interior que se prestasse a arrancar um gol daquele corinthians safado. na ocasião, era o são bento, e o corinthians só foi empatar aos 44 do segundo tempo.

naquele ano, meu time não levantou a taça do campeonato em questão. aliás, a gente não levantou taça nenhuma no ano de 2016 e todas as idas ao estádio foram de enorme insatisfação por gostar tanto de algo que me dava tanta raiva e que, aparentemente, dava muita raiva aos demais que gostavam daquilo também.

me lembro também daquela outra vez que falei as palavras mais absurdas pra minha namorada em um lugar totalmente esquisito e que a colocou em extremo alerta. era a segunda ou terceira vez que saímos e fomos a uma praça em uma região alta do bairro para ver as luzes da cidade. era de noite, é claro, e a praça gelada tinha um ar erroneamente esquisito.

foi quando, na minha maior falta de noção e de empatia proferi a seguinte frase “você nunca sabe direito sobre uma pessoa, né? você acha que pode conhecer alguém, mas nunca vai saber de fato”. e você acha que terminou por aí? “tem gente que a gente acha que é dahora, mas pode já ter matado alguém”. maaaaaas você acha que acabou por aí? literalmente a próxima frase foi a seguinte “essa praça é um ótimo lugar quem pensa em estuprar ou matar alguém”.

dali em diante, vi a pessoa mais pálida que já vi na minha vida. é claro que eu não falei aquelas coisas porque era eu o cidadão que estava pintando nas minhas falas, mas ponha-se no lugar dela e você sentirá o medo de sair com um cara pela terceira vez e realmente, não saber quem ele é de fato.

hoje essa história é revisitada com humor e com a noção de que eu era e sou totalmente inofensivo. e também um puta sem noção. mas esse momento de palpitação alheia fez pensar no quanto a gente consegue falar merda por metro quadrado. ali naquela praça, de 10 por 10, eu falei muita.

tento lembrar também de todas as vezes que achei que fazer uma tatuagem ia ser tranquilo, lembrando exatamente de como doeu da vez passada. essa é uma história que não é de tanto tempo e nem vai terminar quando você terminar esse texto, já que, pra quem tem bastante tatuagens, nunca é o fim.

toda vez que a pessoa que me tatuou me perguntou se tava tudo bem, eu quis responder “não, arregaçado, você tá queimando a porra da minha pele com mil agulhas e fazendo doer mais que enfiar a mão em lava”, mas só respirei fundo e respondi “sim, de boa”. Acho que tem uma parte da gente bem masoquista que quer fingir que o fogo do inferno tem a sensação de um banho quentinho e gostoso, enquanto parte do nosso corpo físico tá pedindo pelo amor de deus para que aquilo não tenha uma continuidade.

tem gente que detesta fazer tatuagem em mim, me considera chorão, enquanto outros falam que eu nem sofri, por isso prefiro esses segundos, que mentem a fim de me fazerem voltar a dar mais dinheiro em troca de um pedaço do corpo coberto por um desenho sem significado e com gosto duvidoso mas, que naquele momento, foi engraçado o suficiente pra ambas as partes a ponto de virar uma arte definitiva no meu corpo.

assim surgiram o dragão chapado e o tigre com a tatuagem do mike tyson.

no meio disso tudo, me deparei com a vida acontecendo de formas inimagináveis e fazendo-me uma pessoa totalmente esquisita. não como aqueles esquisitões que cheiram a cordas de instrumentos musicais e que talvez nunca tomaram sol pelo branco-virgem de seus tons de pele. nem também como os esquisitos forçados hipsters de estação que vem e vão nas páginas das redes sociais mais descoladas de cada semana. um esquisito comum, de modo a ver a vida como todo esquisito comum vê, imerso nas atribulações diárias com pequenas alegrias proletárias e mais gastos desnecessários do que do que realmente se precisa.

é agridoce pensar que todos esses momentos fazem parte do agora já vivido passado que é uma caixa de lembranças que guardamos as coisas que não conseguimos esquecer, nem se quiséssemos. momentos que foram vividos por pouquíssimas pessoas e que estão para sempre em seu arquivo mental e que, curiosamente, cada um tem sua versão dos fatos, por mais que sejam só complementares ao invés de contrapontos.

lembrar é importante para que a gente mantenha viva a presença não só de momentos, mas de pessoas que foram importantes demais para serem esquecidas só porque não estão em nosso plano, seja momentâneo ou físico. afinal, queria dar um beijo no amigo que perdi por conta da depressão e dizer a ele que faz muita falta e que vive pra sempre nessa lembrança do seu sorriso e, outro beijo, no companheiro de 4 patas que viveu por 18 anos sendo amado e amando de forma incondicional.

são por essas pessoas que a gente continua de cabeça erguida.

enquanto escrevo esse texto de forma a guardar em um relicário de contos que não queria esquecer tão cedo, me deparo com momentos de tristeza e alegria, ambos com a mesma intensidade, me fazendo ter a sensação de que estar vivo é uma loucura sem tamanho e de que amar é a coisa mais preciosa que se existe.

eu amei e odiei todos os momentos que citei aqui. e que bom que eles existiram.

Between birth and death we must find in ourselves, keepers of secrets stored on life’s shelves, locked in our souls they key is always the past, don’t hold on to things cause you know that they just never last

--

--