planta de apartamento

Filipe Maia
4 min readDec 23, 2021

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existe um certo ar de desconfiança em cada relação da cidade, independente do grau de intimidade que qualquer relação possa ter. as pessoas das cidades tem um pé atrás pra tudo, ao mesmo tempo que se afundam em encontros vazios que tentam satisfazer momentos e acalmar o tédio que os prédios de apartamentos quadrados trazem aos muitos que se aglomeram verticalmente em cada canto decadente de um lugar que não aguenta mais tantos passos diários de pessoas que tentam se encontrar.

a gente se encontra tentando se encontrar sempre.

os drinks com nomes diferentes não escondem a simplicidade de quem tenta parecer mais do que realmente é ou do que gostaria de ser. existe também a ideia de uma ampla humildade cabida a quem sofreu para estar ali, mesmo que seja somente umas horas a mais no trânsito. sofrimento esse que não dá a ninguém a chancela de pessoa mais chata ou prepotente da sala, mas mesmo assim as pequenas rodas de conversa são cheias de achismos e risadas forçadas para aliviar o peso da existência que não deu certo e nem vai dar tão cedo.

na cidade as pessoas são números. dentro de seus postos de trabalho, nas filas dos correios, na espera de uma mesa no restaurante do centro, na fila do médico em dias de diarréia coletiva, em fileiras de cinema esperando um filme cult dos anos 70… números que exprimem a mais alta ordem de importância em si mesmo, uma vez que todos são levados a pensar que são importantes de alguma forma para alguma coisa ou para alguém.

de fato não podemos mensurar o grau de importância de cada em pequenos âmbitos, afinal não somos programados como os filmes de ficção científica nos fazem acreditar que somos. somos múltiplos dentro de nós mesmos, mas as pessoas da cidade, além de saberem disso, não escondem a insatisfação de que talvez quisessem ser muito mais. afinal o enclausuramento e a falta de sol fazem com que o desânimo seja motivo de compras desnecessárias para cantos da sala que nem tem mais onde colocar coisa.

as pessoas se fecham em pequenos cubículos arborizados de plantas de pequeno porte acreditando que aquela companhia seja realmente a melhor que vai ter no dia, afinal, o ser humano não suporta outro ser humano que seja tão arrogante quanto ele mesmo é. por isso plantas morrem de tédio e se afogam nas próprias águas, porque não aguentam mais ouvir histórias sobre pessoas que são extremamente ruins e egoístas e que se pudessem tirariam a vida de outra só para chegar mais cedo a um escritório igualmente entediante às suas casas cheias de plantas de jardins verticais.

todo ser da cidade se julga super importante porque acredita no pertencimento. acredita que ali naquelas ruas sujas e paredes de arquitetura hostil e sem sentimento, encontrou o amor da sua vida ou chorou tanto voltando pra casa que ressignificou o caminho para que parecesse um poema triste de algum escritor bêbado dos anos 70.

nem todos sabem rimar ou cantar, de fato, mas todos sabem uma música que encaixa perfeitamente naquela dança sozinha no canto escuro da sala, aquela que abraça o próprio ser sem um pingo de dignidade e de forma totalmente íntima e especial. todo mundo sabe também qual a música perfeita que desliga o motor no fim do dia voltando no trem lotado pra casa em busca do conforto de plantas que aprendeu a gostar de ter.

de certa forma é um movimento noir perambular as ruas depois das 19h em qualquer grande cidade, esperando o pior e aceitando cada lucro que o movimento dos corpos pode trazer. tem gente que passa por isso despercebido, afinal sobreviver toma mais tempo do que viver. mas tem gente que consegue observar beleza nos postes piscando e nos cachorros latindo, nos diversos sons que permeiam o mesmo ambiente e nos cheiros que saem das cozinhas.

a cidade dá fome, dá sede, dá raiva.

cada um tem da cidade aquilo que se permite ter. tem quem goste do perigo e quem o detesta. quem prefira os refúgios e quem não tem escolha de que caminho tomar. tem quem use as pedras para subir e quem desce por causa delas. tem gente morrendo e gente vivendo, tem gente ouvindo e gente cantando, cada um à sua maneira.

e as músicas da cidade não precisam necessariamente serem boas ou terem significados históricos. elas precisam pertencer àquelas paredes tanto quanto quem as canta, afinal para subir até os ares é preciso que seja cantada a plenos pulmões em uma das sacadas cheias de plantas de alguma esquina do centro velho daquela cidade que não consegue mais dormir.

Over the turnstiles and out in the traffic
There’s ways of livin’, it’s the way I’m livin’ right or wrong
It’s all that I can do and I wouldn’t wanna let you be

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